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Suicídio - conhecer para prevenir



Pesquisa inédita sobre o suicídio reitera importância de aprimorar programas de prevenção

A convulsão bélica na qual o mundo mergulha neste momento cabe na medida para uma retomada das reflexões sobre as clássicas pulsões de vida e morte que ainda fundamentam boa parte das ciências da mente. E quando se tem à mão a possibilidade de uma abordagem “ao arrepio” da complexidade do viver humano, o resultado pode ser muito instigante. É o que oferece a tese de doutorado Proposta psicológica de uma entrevista semi-estruturada para autópsia em casos de suicídio (ESAP), defendida na Unicamp pela psicóloga clínica Blanca Susana Guevara Werlang, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mesmo se não acabasse por se encaixar no atroz pano de fundo dos atentados terroristas que estão prestes a desembocar na primeira guerra mundial do século 21, o estudo de Blanca, já por si, encontraria ressonância junto às mais intensas inquietações da modernidade. Afinal, décadas atrás, o escritor argelino Albert Camus pontuou: “O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo”.

De fato. A realidade que embasou a pesquisadora não foi o fanatismo político-religioso que impulsionou aviões seqüestrados contra as torres gêmeas do World Trade Center e o Pentágono. Até porque os acontecimentos de 11 de setembro precederam sua pesquisa. Mas, principalmente, porque seu foco é o chamado “homem comum”. Que, longe de vislumbrar qualquer glória no ato de se matar, muitas vezes termina por fazê-lo, numa freqüência que situa o suicídio entre as dez principais causas de morte no mundo para indivíduos de todas as idades. E, agravando, entre a segunda ou terceira para a faixa etária de 15 a 35 anos. “Portanto, estamos nos referindo a um grave problema de saúde pública”, frisa Blanca, que acredita no potencial da pesquisa como base instrumental para o desenvolvimento de programas de prevenção.

Principalmente no Brasil, ressalta: “Entre nós, o suicídio ainda é uma questão pouco abordada e refletida”. Isso, não obstante serem bem evidentes o que ela classifica de “coeficientes”, que, na sua avaliação, “demonstram que a situação é crítica, pelo menos em certas localidades, e que o comportamento suicida é um episódio sério, que exige não só atenção especial, mas também uma metodologia de investigação mais efetiva”. Se ainda é embrionária no Brasil – e dependente de pioneirismos acadêmicos como o de Blanca –, nos EUA, por exemplo, a autópsia psicológica é uma técnica que começou a ser desenvolvida já na década de 1950.

Além do clichê

Não que, a par disso, um número significativo de estratégias não tenha sido aperfeiçoado para abordar o problema. “Mas continuamos com dificuldades de compreender as características pessoais dos sujeitos que realmente cometem suicídio, por não serem passíveis nem de avaliação direta, nem de tratamento de qualquer espécie”, observa a psicóloga. “Assim, é difícil predizer quais deles, potencialmente suicidas, vão transformar suas fantasias e/ou ideações em atos concretos”. Ela acrescenta barreiras de ordem metodológicas para a determinação do “modo de morte”, de forma a diferenciar, com segurança, as que realmente advêm de suicídio das que têm outra origem.

Afinal, ao contrário do que mitifica uma certa classe popularesca de romance, cinema e novelas de TV, não é sempre que o “investigador psicológico” vai encontrar, providencialmente, na cena de um suicídio, o manjado bilhete iniciado pelo clichê “A quem interessar possa...”. Por isso, antes de começar a trilhar sua pesquisa, Blanca se debruçou na literatura médica internacional e se convenceu: “São efetivas as chances de se chegar à constatação do suicídio mediante exames retrospectivos. Trata-se de uma avaliação capaz de sinalizar pistas diretas ou indiretas acerca de um determinado comportamento letal que estava por atingir o seu ápice”. Em resumo: compreende-se, com razoável grau de certeza, o que ela chama de “aspectos psicológicos de uma morte específica”.

E como mapear com segurança tais pistas, se o investigado em si já está morto? “Recolhe-se, via entrevistas, informações de diferentes pessoas que conheciam a vítima – a começar pelo cônjuge, depois parentes, recorrendo também a amigos, colegas de trabalho ou de estudo e até a simples conhecidos. Reconstitui-se o estilo de vida do falecido, elaborando-se, assim, uma história clínica a mais completa possível”, responde a psicóloga.

Como foi feito o estudo

Para sua tese, Blanca selecionou 21 casos de morte notificados como suicídio em organismos policiais e de medicina legal da Região Metropolitana de Porto Alegre. Uma empreitada que exigiu fôlego para ser deslanchada, lembra a pesquisadora: “A partir dos registros de morte por suicídio de 399 casos na Grande Porto Alegre, foi possível examinar e registrar dados de mais de uma centena de inquéritos, entre agosto de 1998 a janeiro do ano passado”. No transcorrer, houve o afunilamento. “Para avaliar a aplicabilidade do instrumento, fechamos uma amostra de 42 sujeitos, que, de alguma forma, se associavam com os 21 casos”. Esse contingente – tecnicamente denominado de “informante” – possibilitou 25 entrevistas, que foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas. “A seleção atendeu a critérios tanto de inclusão quanto de exclusão”, explica a psicóloga.

No primeiro caso, valorizou-se o próprio registro da morte como suicídio; a existência de dados de identificação (incluindo certificação do último endereço de parentes, amigos, conhecidos etc.); a possibilidade de acesso a dois informantes sobre cada caso – ou até apenas um, quando era o único possível, desde que não apresentasse contradições com os dados periciais; e o consentimento formal em participar do levantamento. Os critérios de exclusão foram: último endereço dos informantes estar fora da área urbana da Grande Porto Alegre; o fato de a língua falada não ser o português, ou qualquer impedimento de comunicação adequada; a não localização do informante até 30 semanas após a morte da vítima, e a impossibilidade de ser entrevistado até 32 semanas depois do episódio.

Pontos chaves

Por mais que a literatura consultada por Blanca salientasse a importância clínica para a autópsia psicológica, ela constatou que os autores não conseguiam indicar estratégias definidas. “Há disponibilidade tão somente de sugestões de áreas ou tópicos de investigação”, afirma. Daí, a necessidade do estabelecimento de quatro “pontos chaves”, como ela nomeou: precipitadores e/ou estressores, motivação, letalidade e intencionalidade.

“São o que cientificamente se define como constructos, ou seja, os pilares teóricos subjacentes à estratégia de autópsia psicológica”, explica a pesquisadora. “A exploração de todos eles é fundamental. Mas, sem dúvida, a ESAP está baseada – ou enfocada – no elemento que falta: a intenção da vítima em relação à sua própria morte. Portanto, entendendo o suicídio como um ato de se matar intencionalmente, e a ESAP como uma forma de avaliar, após a morte, o que estava, antes dela, na mente da pessoa, se torna imperioso identificar como o sujeito planejou, preparou e objetivou sua própria morte”.

Voltemos a Camus. Ele também escreveu: "Eu amo a vida, eis a minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto, que não tenho nenhuma imaginação para o que não for vida". Camus morreu num acidente de carro na França, em 1960, aos 46 anos. Blanca Werlang acredita que, ao possibilitar a reconstrução do perfil psicológico do suicida, a ESAP - "tese que lhe conferiu o título de doutora em Ciências Médicas na área de Saúde Mental pela Unicamp - "pode embasar programas de prevenção, corroborando e/ou identificando novos fatores de risco e correlatos". Ela cita ainda a validade do método para colaborar com médicos legistas e profissionais de direito penal e cível, “no esclarecimento de casos de morte e processos judiciais".

"Contudo, no nosso meio, é ainda um tipo de avaliação pouco divulgado, cabendo lembrar que se trata de uma estratégia de avaliação complexa, até agora sem muito rigor metodológico e ainda sem um modelo de procedimento estruturado", relativiza.

"Ciente deste problema e entendendo que o suicídio é um fenômeno que suscita-nos a preocupação de auxiliar a promoção da saúde mental, torna-se fundamental tentar diminuir o viés produzido pela subjetividade no uso deste recurso de avaliação, complementa. Por isso, sua proposta foi viabilizar um trabalho de pesquisa para investigar a aplicabilidade de um método “cujos dados demonstrassem permitir um grau razoável de concordância entre avaliadores". Embora tenha sido bem sucedida, ela admite: "Novos estudos se tornam necessários, utilizando-se agora um grupo controle de sujeitos com modo de morte duvidoso, para poder ampliar a abrangência da estratégia". Lembrando que "o suicídio é um fenômeno multidimensional", Blanca informa: "Nas últimas décadas, o maior esforço tem sido na identificação de fatores de risco, o que tem possibilitado reconhecer grupos mais críticos e sua associação com variáveis demográficas, psicossociais e psiquiátricas associadas ao suicídio".

Após constatar que "estudos de autopsia psicológica junto a populações suicidas de certas localidades possibilitaram obter dados sócio-demográficos e clínicos", a pesquisadora propõe que tais conhecimentos subsidiem as ações preventivas. "Afinal, são fundamentais medidas que auxiliem os indivíduos dessas comunidades a encontrar outras alternativas para suas dificuldades", insiste.

A intenção letal

Segundo Blanca, "além de demonstrar a intenção consciente do falecido, é imprescindível também analisar as suas características psicossociais, para identificar os motivos que, ao longo da vida, auxiliaram a estruturar a saída suicida". Dentre os pontos chaves, a psicóloga destaca a letalidade, pois o seu grau pode ser tomado como sinônimo de "suicidalidade". Ou, como ela resume: "Avaliar o grau de gravidade do gesto suicida pode nos mostrar também a intenção letal do indivíduo".

Antes de chegar à banca examinadora da tese, os dados foram avaliados pela própria pesquisadora e por uma auxiliar, presente às entrevistas, no papel de observadora, mas com postura independente. E uma das etapas finais do trabalho consistiu em submetê-lo a mais dois profissionais da área de saúde mental (na tese, referidos como "juízes"), ao quais couberam também fazer avaliações independentes sobre cada caso pesquisado.

Para verificar o grau de concordância entre os avaliadores, os dados foram processados sob os ditames da estatística kappa do programa stata. Trata-se de um método de cálculo, uma razão que pode ir da discordância perfeita à concordância perfeita.

"Foi possível demonstrar que a ESAP é aplicável, porque fornece informações que permitem um grau marcante de concordância entre avaliadores. Tal grau de concordância foi verificado por nada menos que 120 mensurações de julgamentos em quatro situações diversas, comparando-se avaliações de quatro juízes. Portanto, é possível usar com confiabilidade um instrumento semi-estruturado para autópsia psicológica em casos de suicídio", conclui Blanca Werlang.

Luto é mais doloroso

Algumas dezenas de entrevistas e uma tese. Colocado assim, soa até fácil. Mas, ao relembrar o making off de seu trabalho, Blanca não consegue esconder o quanto foi tocada emocionalmente pelo drama dos familiares e amigos das vítimas de suicídio. "As pessoas entrevistadas estavam ainda em processo de luto diferenciado. A morte de um ente querido por suicídio não é experienciada como um fato normal, comum. A mobilização emocional é bastante intensa, porque são abordados aspectos muito sofridos. O luto, no caso, parece ser mais doloroso e traumático, em função do impacto provocado pelo inesperado do acontecimento", busca definir.

"Em função disso não só é necessário administrar adequadamente esta estratégia de avaliação, mas também que o entrevistador, além de ter experiência clínica, seja capaz de interpretar cientificamente os dados obtidos e manejar as conseqüências clínicas da entrevista, pela mobilização afetiva produzida", acrescenta.

E qual o perfil dos suicidas incluídos na pesquisa? A psicóloga constatou a predominância de homens, com idade média de 39,7 anos, a maioria de cor branca, solteiros, com 1º grau incompleto, que se declaravam católicos – mas em geral não-praticantes – e com situação ocupacional precária em termos de produtividade econômica.

As mortes ocorreram mais freqüentemente na própria residência, por enforcamento. Predominaram na primavera. O dia da semana em que mais se verificaram foi segunda-feira, principalmente à noite.

No aspecto clínico, ela identificou fatores já relacionados na literatura suicidiológica: impulsividade, agressividade, labilidade de humor, problemas no relacionamento familiar, história familiar de doença psiquiátrica, traços ou sintomas de depressão, história familiar de suicídio e dependência de álcool.

Pesquisa sem similares

A tese de Blanca Werlang foi orientada por Neury José Botega, coordenador do Laboratório de Saúde Mental no Hospital Geral e professor livre-docente do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Ele elogia o ineditismo da pesquisa da colega gaúcha no Brasil, acrescentando: "No levantamento da literatura que fizemos, não encontramos similar em outros países”. Segundo o especialista, a ESAP nasceu como instrumento forense, “mas, com o tempo, acabou sendo prioritariamente usada com fins de pesquisa, em busca de fatores que pudessem nos auxiliar na prevenção do suicídio".

Para Botega, o trabalho de Blanca resgata um aspecto importante, tanto sob o ponto de vista metodológico de pesquisa, quanto forense: "Será que, num campo onde existe tanta subjetividade, as avaliações de duas pessoas coincidiriam? Os achados mostraram que, dentro dos limites de nosso método, sim, há concordância".

A partir do start dado por ela, o orientador acredita que surgirão aprimoramentos. "Porém, certamente o roteiro elaborado pela Blanca é o único que temos com tamanha consistência e respaldo teórico. Agora é esperar que mais estudos possam se desenvolver, a fim de que possamos, cada vez mais, auxiliar pessoas e prever suicídios passíveis de serem evitados", torce o professor.

Botega é também pesquisador do CNPq e autor do livro Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: Interconsulta e Emergência (Artmed Editora), que será lançado neste mês.

Jornal da Unicamp – Campinas, novembro de 2001
Carlos Lemes Pereira
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/nov2001/unihoje_ju168pag14.html

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